23/05/2021

UTIs e a falência do Estado Democrático de Direito

Por Jéssyca Verucy R. Barbosa e Felipe Labruna - Advogados*

Antes do surgimento da pandemia de covid-19, o Estado brasileiro já mostrava sua incapacidade em atender as necessidades básicas da população mais carente, comprovando sua ineficiência, mesmo diante da nossa Constituição que prescreve proteção especial de cláusula pétrea aos direitos fundamentais. A indagação que fica é: se o Brasil em situações de normalidade não conseguia atender aos anseios básicos da população, como conseguirá concretizá-los no atual contexto de pandemia?

Parte-se do pressuposto de que o Poder Constituinte estabeleceu uma proteção à saúde como direito de todos e dever do Estado, ou seja, de que a universalização da saúde é uma norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata pelo governo brasileiro, não podendo jamais ser relegada ao segundo plano.

Infelizmente o acesso ao atendimento em hospitais públicos tem sido o oposto do que defendido constitucionalmente, pois a realidade brasileira mostra hospitais superlotados, poucas vagas de UTI, poucos médicos e até mesmo falta de remédios básicos para doenças comuns. Isso já mostra que o Brasil antes mesmo de ser atingido pelo novo coronavírus, já enfrentava uma crise na promoção e efetividade da saúde pública. Diante da inércia e da má-gestão dos recursos públicos que possibilitassem a concretização da saúde e da dignidade da pessoa humana pelo Poder Executivo, em seus três níveis (federal, estadual e municipal), é necessária a atuação do Poder Judiciário como guardião dos direitos fundamentais.

O ativismo judicial possui origem circundada na produção jurisprudencial dos Estados Unidos e é a postura de escolha de uma maneira própria e antecipatória de examinar e entender a Constituição, aumentando sua essência e abrangência. Habitualmente ele é exercido em momentos de recuo e retraimento do Poder Legislativo e de determinada dissociação entre a ordem política e a sociedade civil, em que é impossibilitado o atendimento dos anseios sociais de forma efetiva. Para o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Robeto Barroso,[1] o conceito de ativismo judicial, empregado em determinadas ocasiões recentemente no Brasil, manifesta uma postura de interpretar de maneira mais abrangente o teor da Constituição, incrementando o significado e a cobertura de seus comandos, além do que previu o legislador constituinte. Trata-se de um instrumento que visa a contornar o procedimento político majoritário quando este se mostra prostrado ou impossibilitado de gerar consenso.

Quando a população, especialmente a mais carente de recursos, não consegue uma resposta do Governo quanto à violação dos seus direitos, inevitavelmente procura no Judiciário aquilo que nem a lei, por si só, e nem as políticas públicas existentes foram capazes de oferecer, seu direito fundamental à resposta correta. Esta requer a melhor interpretação do julgador na concretização do direito à saúde, como corolário do direito à vida. Nesse aspecto, a judicialização da crise causada pela covid-19 está condizente com as diretrizes do Estado Democrático de Direito porque consiste numa decisão democrática, que decorreu de um fato (pandemia), pautada nos objetivos constitucionais indispensáveis ao bem-estar de todo e qualquer cidadão. Além disso, o julgador ao aplicar o direito, constrói uma decisão nos moldes dos enunciados pré-estabelecidos na comunidade jurídica, sem jamais se valer dos próprios desejos, ideologias ou fundamentação com base em subjetivismos, típicos do ativismo judicial.

Na conjuntura brasileira, a judicialização é quadro que é oriundo da sistemática constitucional adotada e não uma livre prática de iniciativa política. Assim sendo, em decorrência da judicialização o Poder Judiciário decide porque é o que deve ser feito por ele, porque é sua atribuição inerente, sem que haja opções ou alternativas. Assim, se um comando constitucional possibilita que dele se reconheça uma intenção, seja ela abstrata ou objetiva, ao magistrado compete apreciá-la, emitindo um decisum sobre ela. A judicialização é resultado do paradigma analítico da Constituição Federal e do extensivo mecanismo de controle de constitucionalidade empregado no Brasil, que fazem com que debates de grande abrangência política e moral sejam travados sob o formato de ações judiciais. Nestes termos, convém ressaltar que a judicialização não é oriunda da vontade própria do Judiciário, mas do legislador constituinte.[2]

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 671 com pedido de liminar tem por objetivo assegurar o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde conforme previsão constitucional, visando à proteção aos direitos fundamentais, como a vida, a saúde e a dignidade da pessoa humana. Para a concretização desses direitos, nos termos do artigo 196 da Constituição Federal, a petição exigia a regulação pelo Poder Público dos leitos de UTI na rede privada durante o alastramento do novo coronavírus.

Entretanto, o ministro do STF Ricardo Lewandovisk proferiu decisão negando a procedência dessa ADPF por entender que o Poder Executivo já dispõe de meios legais para requisitar os leitos de UTI na rede privada. Com isso, enfatizou que os pedidos elencados nessa peça ferem a Separação dos Poderes, uma vez que haveria ingerência do Poder Judiciário sobre a gestão pública do Poder Executivo. Conforme a decisão do ministro, o Poder Judiciário só deveria ser acionado quando nenhum dos outros Poderes fosse capaz de resolver a questão de vagas em leitos de UTI. A pergunta que se faz pertinente é: seria crível um cidadão acometido por uma doença grave esperar pelo poder executivo decidir pelas vagas em leitos de UTI e na omissão dele recorrer ao Poder Judiciário? Esperar que isso acontecesse poderia custar muitas vidas e é o que vem acontecendo nos últimos meses em várias cidades localizadas em diferentes regiões do país.

Muitas vidas foram extintas devido à falta de leito em UTI e infelizmente esse quadro já era preexistente à chegada da pandemia. Por essa razão, fica a pergunta: a melhor resposta que o STF poderia dar à sociedade era preservar a Separação de Poderes em detrimento do direito fundamental à vida? Uma decisão democrática requer a proteção de toda e qualquer vida, principalmente daqueles que possuem menos recursos. Escolher vidas por falta de recursos públicos, ou para preservar a harmonia entre os Poderes, comprova a falência do nosso Estado Democrático de Direito.

* Jéssyca Verucy R. Barbosa, mestranda em Direito pela PUC-SP. Graduada em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA-CE). Especialista em Direito Tributário. Advogada

* Felipe Labruna, mestrando e graduado em Direito pela PUC-SP. Especialista em Ciência Política e em Direito Processual Civil. Assessor no TJSP

[1] BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In (Syn)Thesis, vol. 05, nº 01. Rio de Janeiro: Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012.

[2] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

Postado em 23/05/2021 às 21:00 - Publicado originalmente na coluna de Fausto Macedo no Estadão

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